segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Arraia

A noite desce sobre a serra como um manto, escondendo no seu âmago falésias rochosas e vales gelados. O vento assobia por entre granitos milenares. O quarto minguante da lua e as estrelas não deixam distinguir mais que algumas sombras.
Sou um desses vultos. Não sei quantos à minha volta serão reais. Parece que estou sempre a ouvir passos. Paro e olho para trás. Só o vento sopra. Estremeço e aperto o casaco contra o peito. Retomo a marcha, apoiado no cajado, caminhando tão rápido quanto a inclinação me permite.
Não faço ideia de quanto falta. A última refeição foi há dois dias. Tive sorte, o velho pastor para além de me dar janta e pernoita, ainda me deu indicações precisas do caminho a seguir. Não devo ser o primeiro que ele acolhe. Vi a foto de um rapaz pendurada ao lado de uma cruz. Trocamos um olhar e bastou. Não precisámos de dizer mais nada. Espero que nunca o descubram. Esforço-me por afastar esse pensamento da cabeça.
Deixei um bilhete na mesa da cozinha para a minha mãe. Apenas uma palavra: arraia. É o que precisa de saber. Como terá reagido? Talvez um dia o saiba. Espero que compreenda que não tenho outra escolha. Meio ano depois de o meu pai ter sido chamado, um tiro de morteiro deixou-o a uma distância que não pode ser vencida. Tiago, o meu irmão mais velho, foi dado como desaparecido faz este Natal um ano. O Vítor, o nosso vizinho de cima, ficou paraplégico numa derrocada. Parece que ainda lhe ouço os nocturnos, a fenderem a noite. E, como eles, tantos outros. Tinha de escapar. Não foi o mais brilhante dos planos, atravessar a serra no Inverno, no entanto o tempo estava a esgotar-se. Faço dezasseis anos daqui a um mês. Não deve demorar nem uma semana para que chegue a convocatória.
Chego ao topo da elevação. Ouço uivos à distância. O pastor tinha razão, não estou sozinho. A aldeia mais próxima fica a mais de dez quilómetros. Ninguém se aventura por aqui. Só cabras, pastores e a Divisão Hermínia. Avanço pelo meio das giestas, tão altas que me fustigam a face. As pálpebras pesam-me e os músculos doem-me, mas sei que se adormecer no meio deste frio, é possível que não acorde. Cada restolhar da vegetação faz-me saltar o coração. De acordo com o que o pastor me disse, devo estar nas Pedras Cruéis.
Os primeiros flocos batem-me nas pálpebras. Sou obrigado a parar num equilíbrio precário. Ergo os dedos gelados para proteger a face. Parece-me demasiado íngreme para descer. O fundo tanto pode estar a meio metro como a meia centena. O vento entra na roupa como se as costuras estivessem mal cosidas. Tremo ainda mais violentamente. Apalpo a roupa, sei que não tem muitos buracos. Volto atrás. De novo no topo, procuro a estrela polar. Segundo o velho, estou perto do ponto mais alto do país que se fragmentou há duas décadas. Aprendi na escola que Pena Tervinca passou a ser o mais alto.
Sigo pelo meio das urzes, a tentar evitar o vento. A minha atenção prende-se no piar de uma coruja vindo de uma árvore próxima. A vegetação agita-se. Sustenho a respiração. Um vulto veloz desaparece à minha direita. Aperto mais o cajado. Não sei se o conseguia soltar com os dedos assim enregelados.
Foi há dois meses que passámos a usar a velha Ponte Dona Maria. Nem tivemos outra escolha: a do Infante foi atingida num bombardeamento. Tivemos sorte: o nosso prédio foi dos poucos que escapou intacto. Quem me dera estar no quente da cozinha.
Quando a lua atinge o seu zénite, encontro-me à beira de um lago. Ao ver a água, apercebo-me da garganta seca. Mergulho a mão no líquido glacial e levo-a à boca. O frio espalha-se-me pelas entranhas. Recomeço a tremer. Bebo mais uma vez.
Passos ressoam nas pedras. Ergo-me e tento voltar à vegetação. Tropeço e caio num zimbro. Esbracejo para me libertar e, quando o consigo, escondo-me nos arbustos. O coração está a galope. Sustenho a respiração. Será que estou a imaginar coisas? Afasto-me dali o mais rápido que consigo. Os ramos castigam-me a cara. Não sei onde pára o cajado.
Quando dou por mim, estou no topo de outra elevação. Dor de burro, cortes nas mãos e na cara. Nada de grave. Cruzo os braços sobre o peito, apertando a roupa contra o corpo. A neve continua a cair, os flocos a acumularem-se sobre tudo. Ergo o olhar. Luzes ao fundo. O que serão? É melhor evitá-las, não vou arriscar. Por cima deste frágil manto branco que me envolve, uma nuvem cobre a lua.
– … não faço ideia – diz uma voz masculina.
Encolho-me no meio da vegetação.
– Nunca pensaste nisso? Dos que passam pra lá do rio, nenhum volta… Achas que se escapam disto? – devolve outra voz.
Os passos aproximam-se.
– Pensa lá um pouco… O que é que a gente faz quando apanha um Asturiano deste lado? Hã?…
Param quase colados a mim. Uma luz. Um cigarro é aceso. Consigo distinguir a sombra das armas. Estou demasiado perto. Respiro muito devagar. Os soldados partilham a mortalha em silêncio. As articulações doem-me. Não posso mexer um único músculo. Atiram a beata e esta aterra mesmo à minha beira. Deixo-os sumirem-se na noite antes de me mover novamente. Mal me consigo mexer.
Por sorte, encontro uma abertura perto, coberta de arbustos que afasto de modo atabalhoado. Cada movimento é uma tortura. Quando é que foi a última vez que dormi uma noite completa? Este recanto diminuto terá que servir. Deixo-me cair para o interior e encolho-me em posição fetal. O frio da rocha atravessa a roupa. Pelo menos aqui o vento não chega. O meu tremer é tão violento que se deve ouvir a metros. Não sei se vou conseguir dormir.
Na cozinha está-se bem. A mãe serve-me um prato de sopa, enquanto sorri. Diz-me que a ditadura e a guerra acabaram. Não me passa pela cabeça dizer-lhe que estava a pensar fugir no pico do Inverno. Sujeito a morrer nalgum buraco, perdido entre as patrulhas dum lado e do outro da arraia. Mergulho a colher na sopa e trago-a à boca. Sinto calor invadir-me o corpo, como o raiar da luz matinal. Até que enfim! Já não se sinto a tremer. Ainda bem, não deve faltar muito para o nascer do sol.


Este conto foi originalmente publicado no blogue Fantasy & Co.

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