sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A Primavera - Parte 2/2


Este conto faz parte da antologia Legado de Eros:

Podem encontrar a primeira parte em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2013/11/a-primavera-parte-12.html

As sirenes ouviram-se a meio do jantar. Num momento de hesitação, mãe e filha fitaram-se. Ana levou a taça à boca e sorveu o resto da sopa sem respirar. Levantou-se num pulo e foi ao quarto buscar um cobertor, encontrando a mãe à porta com uma vela e fósforos. A progenitora trancou a porta, havia sempre quem se aproveitasse da confusão para se apoderar do alheio. Desceram as escadas, saindo pelas traseiras do prédio.
Apressaram-se a galgar os degraus que conduziam ao abrigo. A construção subterrânea em betão maciço fora feita para proteger os residentes do edifício. Contudo, mal havia espaço para todos se sentarem. Assim que fecharam a porta, Ana sentiu falta de ar. Ficara com um medo irracional de espaços fechados depois de quase ter sido soterrada num bombardeamento. Nesse Inverno era pouco mais do que uma criança e trauma mantivera-se até à idade adulta.
Aconchegou-se o melhor que pôde, partilhando o cobertor com a mãe e o espaço com duas dezenas de pessoas. A área era semelhante à do seu quarto. Não havia janelas. A porta era reforçada e do exterior pouco mais se ouvia que o alarme. A luz mantinha-se acesa, espalhando uma parca luminosidade pelas paredes nuas e faces receosas. Só podiam esperar.
― Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo ― iniciou alguém.
― Ámen ― responderam em coro.
Debitando a oração sem ter de pensar, Ana fixou o olhar nos chinelos. O pensamento voou para a estação de São Bento, meio ano antes. Lá fora as folhas castanhas caíam das árvores. Miguel envergava o seu uniforme novo e a metralhadora pendia nas costas. Cumpria o destino de todos os rapazes que haviam nascido em 2019. A mãe chorava. Ana também não conseguiu conter as lágrimas. Só o pai e os irmãos pareciam conseguir aguentar a tensão do momento. O revisor apitou.
Sem se preocupar com o que os pais iriam pensar, lançaram-se num beijo apaixonado, perdendo-se nos lábios um do outro. Durou um momento apenas, mas foi como se uma vida inteira se tivesse passado. O amor de ambos estava definitivamente selado.
Separaram-se. Miguel correu para a carruagem, galgando os degraus no último momento. As portas fecharam-se. O comboio desapareceu. Foram precisos vários minutos para que ela se atrevesse a mexer um único músculo.
No abrigo a oração terminava, recomeçando logo de seguida. Ana olhou para a lâmpada solitária, esperando que o seu amado estivesse livre de perigo.


Ao ouvirem a artilharia rugir, os soldados aninharam-se na vala. Miguel segurou a arma com força e deitou-se de barriga para baixo. A água ensopou-o de imediato e a lama infiltrou-se em cada poro. Ajeitou o capacete, mantendo a boca aberta, como lhe haviam ensinado. O salvo aterrou ali perto. Não tardou que os canhões daquele lado do rio respondessem com a mesma ferocidade.
Um foguete iluminou o céu. Miguel ergueu-se, sem se preocupar com a gosma que o cobria. Mais foguetes subiam, tornando a noite em dia. Ouviu o soltar da patilha de segurança de uma metralhadora.
Aventurou um olhar, o inimigo atravessava o rio. As primeiras balas foram disparadas. De quando a quando uma tracejante definia a trajectória. Os morteiros iniciaram a sua maldita tarefa. As primeiras explosões acertaram ao lado, mas não tardou que cada munição despedaçasse uma pequena embarcação. Os inimigos não pouparam nas munições, atingindo a trincheira. Manteve-se imóvel, numa crença parva de que isso o poderia salvar
Assim que os primeiros barcos chegaram à costa, Miguel soltou o trinco da arma. O combate era inevitável.


No abrigo, as pessoas ainda rezavam. Enquanto as bombas caíam, a oração continuou. A filha de três anos dos vizinhos de cima começou a chorar e a mãe pouco mais pôde fazer do que pegá-la ao colo. A prece persistiu num tom monocórdico.
Ali perto, uma rápida sucessão de explosões fez as paredes estremecerem e pequenos detritos caírem do tecto. A luz enfraqueceu por momentos.
Ana deu por si agarrada à mãe. Tinha saudades de quando era criança e não tinha de se preocupar com aviões, nem abrigos, nem morte.
O velhote que dirigia a oração apertava as contas do terço com tanta força que o sangue lhe havia fugido das falanges.
― Pai nosso que estais no céu... ― continuou o idoso
Ana começou a tremer. Desejava que o Pai estivesse mesmo no céu e não permitisse que esta selvajaria acontecesse.
― O pão nosso de cada dia nos dai hoje...
A luz falhou no meio da resposta.


O dedo de Miguel exerceu uma ligeira pressão no gatilho, disparando uma curta rajada contra as tropas que desembarcavam. Apontou para as silhuetas a poucas dezenas de metros, um dos vultos caiu e os outros lançaram-se ao chão. Não os conseguia ver claramente, o que não o impediu de atirar até ficar sem balas.
Agachou-se, soltando o carregador, substituindo-o pelo que tinha no cinto. Levantou-se de novo, tentando deter o avanço das sombras rastejantes. As explosões sucediam-se. As munições esgotaram-se. Mais uma vez, trocou o carregador.
Ao elevar-se, foi projectado para trás. Uma bala atingira-o por cima do olho direito. Morreu antes de chegar ao chão.


No abrigo, a mãe da Ana foi a mais rápida a reagir, acendendo uma vela. A oração tinha terminado. O silêncio e o medo imperavam sobre aquelas almas. Os ouvidos ainda zumbiam e não deixavam ouvir mais nada do que se passava no exterior. Ninguém se atreveria a abandonar a casamata antes que as sirenes voltassem a tocar.
De súbito, o barulho de motores fez-se ouvir sobre as suas cabeças. A explosão foi ensurdecedora e o abrigo sacudido com violência. Ana percebeu que a bomba deveria ter atingido o seu prédio.
O prédio desabou um segundo depois sobre o abrigo, fazendo-o colapsar. Uma das pedras atingiu Ana na cabeça. Ela perdeu os sentidos, entrando num sono do qual não iria acordar.


Quando amanheceu, as flores lilás jaziam espezinhadas. As folhas e pétalas haviam sido separadas do talo e estavam espalhadas pela terra negra, misturadas com fragmentos de músculo, ossos, metal, sangue e madeira. Uma pétala perdida parecia adornar um dos cadáveres desfigurados, dando-lhe o único funeral que provavelmente receberia. Iriam passar muitas primaveras antes que voltassem a crescer flores naquela margem.

FIM



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