sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A alergia



Faltavam cinco minutos para a meia-noite quando Roberto acabou de armar a bomba. Desprendeu o recipiente de latão cheio de um líquido amarelo com tons esverdeados, que ficou num equilíbrio precário em cima de uma das barras laterais. Limpou o suor da testa e beijou o anel que trazia no dedo. Ajeitou o fato, colocou a cartola e afastou-se da ponte de ferro cruzado.

Àquela hora só os bêbados e as prostitutas percorriam a cidade, por isso, não achou que houvesse o risco de ser reconhecido mais tarde. Que sociedade mais decadente, pensou, sabia que cada um daqueles homens era capaz de matar por um fato de cerimónia. Não esperava que o atentado causasse muitas vítimas, já que escolhera um comboio de mercadorias numa zona ocupada por armazéns.

Enquanto caminhava pelas ruas, combatia o desejo de se enfiar por um dos becos, pois pressentia que todos os olhos estavam voltados para ele. Sabia que teria de se deslocar pelas vias principais para não chamar a atenção. Os nervos eram tantos que se assustou com uma mera buzina. Quase se riu histericamente quando viu tratar-se apenas dum veículo com rodas de coche e muitas rodas dentadas que operavam fora da carroçaria. Já mais calmo, saltou para a berma de modo a deixar passar o mostrengo a vapor conduzido por algum ricalhaço.

A noite estava abafada e o calor já se fazia sentir à várias semanas. O mundo mudava a olhos vistos e quase ninguém se parecia aperceber disso. Cada ano que passava era mais quente que o anterior, o fumo cobria as grande metrópoles e o nível do mar subia cada vez mais. Ninguém queria ouvir falar desses problemas, enquanto o seu estilo de vida pudesse ser mantido, todos eram alérgicos à mudança, como qualquer civilização que se aproxima do seu fim.

Tudo fora planeado para que o atentado fosse atribuído aos alérgicos, um grupo extremista que defendia o uso de técnicas amigas do ambiente. Estes perseguiam uma miragem semelhante à energia solar, que se supunha ter existido há quinhentos anos atrás e que se perdera no grande holocausto. Apesar de se identificar com algumas dessas ideias, Roberto nunca fizera parte de tais círculos e não contava começar naquele momento. As suas razões eram bem diferentes.

Prédios de estilo Neovitoriano passaram a ladear os dois lados da rua. Aqueles apartamentos de madeira de recortes arredondados e telhados oblíquos eram relíquias de outra era. As varandinhas cercadas de madeira branca trabalhada davam-lhe vontade de rir. Não percebia porque é que os haviam recriado, nem porque os restauravam vezes sem fim. Parecia que tinham medo de avançar no tempo, receio das incertezas do futuro e pavor de quebrar as restrições tecnológicas estabelecidas. Tudo porque outrora a espécie quase se extinguira por via das suas próprias invenções. Uma guerra nuclear não era mais possível, contudo, um desastre ambiental teria os mesmo efeitos. A humanidade estava na sua hora dourada, no seu mais importante ponto de viragem, e poucos eram os que conseguiam aperceber disso.

Parou e retirou o relógio do bolso para ver as horas. Faltavam dois minutos para o comboio se encontrar com o seu destino. Ele odiava engenhos que levassem muitas engrenagens, por isso aquele era muito simples. O tremer da ponte, aquando da passagem da locomotiva, iria lançar o recipiente cheio de nitroglicerina contra um dos postes e isso bastaria para detonar o engenho. Os maquinistas nunca se atrasavam.

Um portão preto de cemitério marcava o fim da sua caminhada. Rangeu terrivelmente quando o empurrou, dando-lhe entrada para um espaço completamente deserto e sombrio. Uma árvore frondosa dominava a paisagem, projectado estranhas sombras no pavimento. A tranquilidade do local contrastava com a inquietação que sentia. Caminhou pelo passeio central, passando pelo poço, dirigindo-se à campa da sua noiva.

Sentou-se no túmulo e acariciou a gravura do túmulo, desejando sentir novamente o toque dela. A vida não lhes fora gentil. O forte sentimento que os unia só teve como par o nefasto fim. Ela morrera atropelada por um condutor descuidado. Culpar o condutor era demasiado fácil, pois ele era apenas um produto da sociedade decadente em que estava mergulhado.

Ficara fechado em casa, sem querer comer durante dias a fio. Teria morrido ali se não tivesse recebido uma visita de um dos seus amigos. A conversa que tiveram mudou-lhe a vida, conseguira canalizar o seu desespero. Desde esse dia, Roberto ouviu falar dos alérgicos pela primeira vez e, tal como eles, passara a odiar toda a tecnologia. Passara a ser alérgico a toda a roda dentada e a todo o eixo móvel. Consumido pela mágoa, quase caiu num estado de demência, até que percebeu o que deveria fazer. Tinha de destruir estes malditos monstros com corações de corda e cérebros a vapor. O seu amigo nunca o abandonou e nem negou qualquer tipo de ajuda, nem sequer quando precisou de ajuda para levar a cabo o seu plano pernicioso.

Como previra, a explosão deu-se à meia-noite em ponto. Ouviu de seguida mais três rebentamentos. O clima seco e as matérias inflamáveis, tanto do comboio como dos armazéns, mergulhavam a cidade em chamas. As labaredas subiam mais alto do que esperava, o comboio deveria transportar algum tipo de mercadoria muito inflamável. Impávido, observou o fogo que galgava metro após metro sem que ninguém o pudesse deter.

A tragédia abateu-se sobre a cidade. O número de vítimas escalou de dezenas para a centenas e finalmente atingiu o milhar. Quarteirões inteiros foram devastados. Não houve quem duvidasse que os alérgicos fossem os responsáveis e ninguém se preocupou com o corpo que se afogara no poço do cemitério.


Este conto foi publicado na revista Nanozine ( http://nanoezine.wordpress.com/ ).
Podem efectuar download da revista aqui:  http://nanoezine.files.wordpress.com/2012/07/nanozine6_versc3a3o-impressa.pdf
Link no Goodreads: http://www.goodreads.com/book/show/15767109-nanozine-n-6
Foi comentada em: http://jackolta.blogs.sapo.pt/1996.html

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